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Foto do escritorInstituto Mpumalanga

Bucólica Morretes preserva tradição da culinária paranaense

Luís Antônio quando criança esticava todo o corpo para alcançar uma gororoba grudenta que a mãe deixava sobre o balcão enquanto cozinhava. Daquela massa de aspecto pegajoso, ele improvisa a cola para a confecção de suas pipas. Mal sabia o menino que estava fazendo arte, porém não no sentido pejorativo, como imaginava, mas no artístico mesmo. Pois sua vida reservava ainda muita arte com aquela massa, porém longe das pipas e mais perto da cozinha.

Ele tem os mesmo cabelos lisos da meninice, porém hoje eles combinam com uma voz grave e a língua presa em forte sotaque sulista. O último dedo da mão esquerda é amputado, cicatriz de uma infância peralta quando brincava inadvertidamente com uma espingarda.

A cola das pipas é uma mistura de farinha com água morna, parte essencial do barreado, tradicional prato paranaense para o qual Luís se dedica hoje. Ele vai moldando a massa na velha panela de barro para selar a tampa. O artifício rudimentar cria efeito igual a uma panela de pressão, porém Luís nem pensa em substituir a tradicional manobra. Tudo que ele faz é em nome de uma tradição, que atravessa gerações de sua família. Dentro do recipiente está a carne, que será cozida por volta de 12 horas junto com alguns ingredientes do chefe.


Luís Antônio Romanus deu nova funcionalidade para a goma que usava nas pipas.

Luís Antônio Romanus deu nova funcionalidade para a goma que usava nas pipas.


“Sabe o que eu estou fazendo? Estou barreando. Barrear é um verbo e é daí que vem o nome do prato: Barreado”, explica narrando algumas palavras de forma pausada, como se quisesse se tornar mais didático. “Colegas meus dizem que eu sou saudosista, que ainda estou com a panela de barro. Ora, barreado em panela de pressão pode até ser gostoso, mas não será o sabor próprio de cozinhar lentamente”, defende o cozinheiro, dono do restaurante Romanus, em Morretes, cidade bucólica a 72 km de Curitiba.

Luiz Antônio é apegado às tradições da culinária paranaense e reivindica a autoria do prato para o Paraná. “Uma vez chegou um cidadão de Portugal e disse que já tinha comido lá, mas é daqui, é daqui”, conta em tom de indignação. O chefe se pauta na história para justificar a importância do barreado para cultura do Paraná.

“O barreado tem relação com o Entrudo, que é uma festa de três dias. Os caiçaras ficavam dançando fandango e precisavam repor as energias, então o barreado era preparado. E era feito de maneira muito simples”, explica Luís. As mulheres deixavam a carne assando e também podiam participar da folia. “Dom João proibiu o entrudo, mas depois ele voltou com o nome de Carnaval”, pontua.


Barrear é a arte da culinária do Paraná.

Barrear é a arte da culinária do Paraná.


A carne é servida com pedaços de laranja e banana. “São alimentos que ajudam a liberar as proteínas da carne e facilitam a digestão”, acrescenta Luís Antônio Romanus.

A fumaça começa a escapar da goma que sela a panela. O barulho do vapor chama a atenção do cozinheiro, que passa a observar o fogão com olhar orgulhoso. Aproxima o olfato e sentencia: “Sabor ao cozido, aroma ao assado”.

O paranaense se preocupa com os costumes do seu estado. “Muita gente acha bonito, mas não tem muito a tradição de manter a coisa”, lamenta. Vez ou outro, o tom é quase publicitário ao falar do barreado e de Morretes. “É uma cidade gastronômica, com clima gostoso, verão quase o ano todo. Além da beleza natural, Morretes desconhece a violência urbana”, exalta.

Apesar dos esforços, o barreado não tem o mesmo peso de um churrasco para a cultura gaúcha, por exemplo. No restaurante Romanus, 50% dos clientes preferem pedir peixes ao prato típico da região. Luís Antônio sabe bem, pois gosta de conversar com a clientela, sempre em tom amigável. Hoje sua principal função é essa, uma vez que treinou sua equipe para preparar o barreado conforme manda o costume. “Gosto muito de fazer salão, receber o feedback. O resto é algo gratificante, conhecer pessoas, fazer amizades. Complementa minha vida, que sempre foi comercial”, afirma.


Banana da terra e laranja dão sabor especial e ajudam na digestão de proteínas.

Banana da terra e laranja dão sabor especial e ajudam na digestão de proteínas.


Antes de se dedicar a arte da cozinha, Romanus se formou em informática na capital Curitiba, porém sempre procurou um lugar mais tranquilo para viver. Encontrou Morretes e Elisabeth. A esposa é natural da cidade  vizinha de Antonina e incentivou a mudança de ares.

Cercado pelos morros e a tranquilidade da cidadela, Luís Antônio pode se dedicar a paixão pelo barreado. “Eu sempre gostei de cozinhar, mas queria aprender as técnicas culinárias e ter outros pratos, então eu fiz curso de gastronomia”, justificou o proprietário de um dos mais reconhecidos restaurantes de Morretes.

Hoje ele se considera um artista da cozinha. “Cozinhar é uma arte, desde que você seja fiel. É uma filosofia que começa desde o corte inicial da carne”, afirma. Luís Antônio está desatualizado com os novos softwares do mundo da informática em virtude do tempo afastado dos computadores e teme que o mesmo aconteça ao barreado.

É preciso dedicação para que a tradição não se perca. O chefe fez até alguns cálculos na tentativa de padronizar a receita. Em um montante de papéis amontados no bolso do avental, ele guarda a quantidade de cada ingrediente de acordo com o número de pessoas que serão servidas. Segundo ele, a receita original é muito intuitiva. “Essas receitas mais antigas não tem peso em grama, é mão fechada, pitada, punhado”, enumera o linguajar popular que se avivou com o barreado.

O prato típico paranaense é preparado todos os dias no restaurante Romanus. Ao menos uma vez por semana, o chefe não resiste ao perfume saboroso que escapa à goma. É de se perceber pela saliência abdominal que Luís Antônio não disfarça, com tapinhas de leve sobre a barriga enquanto aguarda a carne.


Cenário bucólico de Morretes incentiva o turismo de gastronomia na região.

Cenário bucólico de Morretes incentiva o turismo de gastronomia na região.


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