O rio é o reflexo de seu entorno. Nas águas é possível ver a paisagem que o cerca. Por meio de um curso d’água se pode desvendar muito a respeito de uma cultura ou características de uma região. Os rios são linhas curvilíneas de uma história, que nem sempre desaguam em um final feliz.
O trajeto do Tietê nos conta sobre São Paulo. O reflexo acinzentado nas águas é a capital, que cresceu monocromática cortando o verde da paleta de cores, as matas ciliares das margens do rio. Nomeou-se Marginal o espaço que deveria ser da natureza. E nessa nova mudança de nomenclatura não se encontraram os pássaros, que compunham o canto do rio. As buzinas, agudas demais, soam sem concorrentes em meio ao silencio-luto do Tietê.
O curso do Tietê, no entanto, cruza com o trajeto de Fernanda Amorim, e de tantas outras pessoas, e desses encontros se faz a esperança de que a sonoridade do rio volte a ser de canto e não de barulho.
Fernanda acorda cedo e encara uma extensa caminhada até o Parque Ecológico de Itaquaquecetuba. Imprime um caminhar moroso em sintonia com a calmaria da manhã dominical. Há dois anos, o trajeto é cumprido ao menos uma vez por mês pela moradora do município, na região metropolitana de São Paulo, para medição dos níveis de poluição no Alto Tietê, região que antecede à capital no curso das águas do rio.
A técnica em meio ambiente enfrenta mais um percurso seguindo a pista de corrida do parque. Não altera o passo ritmado e depois de uma breve análise volta-se à direita descendo um pequeno declive. Posta-se à margem e começa a remexer a mochila, tirando uma série de apetrechos, os quais organiza cuidadosamente.
A parte que lhe cabe: Fernanda é voluntária na medição dos níveis de poluição do Tietê.
Com luvas cirúrgicas e auxílio de um fio conectado a um copinho, recolhe a amostra da água do Rio Tietê. Toma toda a precaução para não entrar em contato com o líquido. A mão direita começa a realizar os testes, enquanto a esquerda trabalha velozmente no aniquilamento dos incansáveis pernilongos que habitam o entorno.
Fernanda realiza o trabalho voluntariamente. Os dados coletados vão para o site da Fundação SOS Mata Atlântica, que monitora a poluição do rio graças à colaboração das pessoas. São diversos pontos de coleta, onde pode se notar as variantes nos níveis de impurezas.
“Os voluntários são simplesmente fundamentais. O projeto tem caráter de envolvimento para além do monitoramento, esse é só o primeiro passo para as pessoas voltarem os olhos para o rio, o que se pode melhorar, o que pode mudar. Isso é impossível sem os voluntários e gera uma reflexão sobre a qualidade da água, e um retrato das bacias hidrográficas”, explica Gustavo Veronesi, do projeto Rede Águas.
Um copinho e um fio são os recursos simples, porém fundamentais para que a voluntária cumpra sua função e mantenha viva sua esperança (Foto: Celia Santos
“É um programa interno da Fundação SOS Mata Atlântica que trabalha em duas frentes: com políticas públicas para gestão dos recursos hídricos e um trabalho de envolvimento com o tema água e saneamento, em conjunto com a comunidade e o controle da qualidade da água”, completa Veronesi.
O que move a jovem moradora de Itaquaquecetuba, de 28 anos, são lembranças de infância, de quem aprendeu com os pais que o rio tem função diferente daquela conhecida pelos paulistanos. Os pais de Fernanda Amorim são nascidos em cidades interioranas, o pai, Nilson, do interior da Bahia e a mãe, Ivany, de Minas Gerais. Municípios onde o rio que corta a cidade é de águas translúcidas, moradia de peixes sempre aberta para a visita das pessoas, que mergulham como Fernanda.
“Todo mundo tem que fazer um pedacinho”, afirma a jovem, com olhar fixo no Tietê, cujas águas estão tomadas por cianobactérias, que se alimentam de matéria orgânica e produzem toxinas. Em muitas coletas, a família Amorim vai junto, não apenas os pais, mas os irmãos de Fernanda também participam do trabalho. “Toda a vida eles me ensinaram a admirar e cuidar”, observa agradecida.
Fernanda traduz perfeitamente a vida dos moradores de Itaquá. Ela mora na cidade, mas estudou e trabalhou fora do município durante muito tempo, assim como sua família. Manter atividades na capital é comum a grande maioria da população da região, chamada de cidade dormitório por abrigar muitas pessoas que não têm condições de pagar um aluguel no perímetro de São Paulo.
Dados coletados por voluntários da SOS Mata Atlântica servem de instrumento de pressão às autoridades. (Foto: Celia Santos)
A diferença está em seu inconformismo, sobretudo nas questões que dizem respeito ao meio ambiente. “Eu sonho em utilizar esse rio de uma maneira que só utilizo fora de São Paulo. A esperança é de mudar. Aos poucos, é possível uma transformação. Não consigo me acostumar com essa situação, eu tenho o sonho muito forte. Faço isso uma vez por mês pelo menos porque simplesmente não me conformo das coisas serem assim”.
Esse definitivamente não é um sonho que se sonha só e para Gustavo Veronesi, tampouco pode ser classificado como utópico. “Não é um sonho pueril, é baseado em fatos reais. Há experiências incríveis de recuperação de rio no exterior. Por isso mantemos o sonho de uma melhoria qualitativa muito intensa, pois já aconteceu em outros lugares”.
A postura da jovem, entretanto, não é a de todos moradores de São Paulo, que olham para a poluição como se ela fizesse parte da ordem natural das cidades. “As pessoas têm que entender que o rio que passa pela cidade não é um esgoto a céu aberto. Se não houver esse entendimento, de que cada um é responsável pelo seu lixo, não caminhamos”, reforça Veronesi.
Fernanda continuará a cumprir a rotina de medição da poluição, sempre com a esperança guarnecida de que as taxas indiquem um novo futuro. Mesmo que de maneira oposta a que gostaria, estar perto do Tietê representa um contato com a natureza, que a leva para a infância e a mantém distante dos produtos tecnológicos, aos quais abomina e resiste. “Não sofro de whatsapp”, encerra.
Os dados coletados, além da função de conscientização, que Veronesi cita como uma das principais causas da poluição são instrumento de cobrança às autoridades. “São utilizados também como forma de pressão com relatórios aos órgãos competentes. Muitas vezes o poder público é o primeiro a desrespeitar a lei”, acrescenta.
Poluentes colaboram para proliferação de cianobactérias. (Foto: Celia Santos)
Mais que tomar consciência do problema, o coordenador do projeto Rede Águas acredita que deve haver um envolvimento maior. “Tem de haver uma sensibilização. As pessoas acreditam ser normal o rio ser sujo. Pode haver outra realidade e precisamos resgatar esse sentimento”.
A poluição é o inconveniente visível e refletido no rio silencioso. Todavia, mais soturnas são as consequências oculta aos olhos. “Os agricultores do cinturão verde de São Paulo também têm que usar a água com parcimônia e utilizar menos agrotóxicos. Cada vez mais fazemos uso de agrotóxicos e isso tem tudo a ver com a água. Isso infiltra no solo e gera um problema de saúde pública”, alerta o especialista.
Se nas águas do Rio Tietê correm poluentes, agrotóxicos, lixo e cianobactérias. Nas veias dos agentes do Tietê, como Fernanda e Gustavo, corre a esperança capaz de movimentar rios inteiros.
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