Dona Anna Marcondes tem passinhos curtos e lentos. Vem caminhando devagar, uma pasta embaixo do braço e o olhar atento ao chão com seus óculos ovalados. O andar pesaroso é de quem carrega muita história.
“Benção avó”, cumprimenta um jovem esguio que cruza com Dona Anna. “Bom dia, avó”, saúda outro, que imediatamente oferece um braço de apoio para a caminhada. Nenhum deles tem os traços da senhora carioca, tampouco descendem geneticamente, entretanto, são netos. Anna tem inúmeros netos, pois o acolhimento fraterno vale mais que qualquer árvore genealógica no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, zona norte do Rio de Janeiro. Por princípio hereditário, são 11 netos e sete bisnetos, família grande de quem teve seis filhos. “Eu gosto. Sou avó deles todos mesmo”, explica.
A enorme quantidade de netos, que a tratam com infalível doçura, é fruto de uma longa luta de Don’Anna, como alguns conjugam. Ela chegou ao Morro em 1958 e se deparou com a escassez de direitos básicos que fazia parte da realidade dos terrenos íngremes do Rio de Janeiro, onde começavam a se estruturar muitas moradias precárias para atender os anseios de grande parte da população, incapaz de arcar com despesas de aluguel.
Dona Anna tem trajetória de conquistas ligadas à educação e cultura no Morro dos Macacos. (Foto: Celia Santos)
“Tudo surgiu da necessidade”, justifica. O “tudo” de Dona Anna se refere a uma série de conquistas que alteraram para melhor a vida dos moradores do Morro dos Macacos a partir da organização de uma associação iniciada por ela. “A gente precisava se unir para mudar. Não tinha projeto nenhum, foi mesmo a necessidade que nos moveu”, reforça.
“A vida dentro de uma comunidade consegue, como um passe de mágica, levar as pessoas a usarem dificuldades como ponto de apoio para mudanças favoráveis. É o resultado do saber que vai se formando no dia a dia de enfrentamento dos problemas.” – trecho da crônica Saberes Comunitário, de Anna Marcondes.
A primeira das muitas necessidades citada pela antiga moradora foi um lugar que acolhesse as crianças, haja vista a imprescindibilidade das mães saírem para trabalhar e ajudar na renda familiar. Dona Anna se lembra do dia que chegou em casa à noite, com dois filhos no colo e a luz havia sido cortada, tornando o Morro ainda mais irregular .
Se faltava energia para a comunidade, não faltava para Anna Marcondes, cujos sonhos eram tão iluminados quanto concretos. A primeira escola foi construída em um galpão e ela, com o segundo grau completo, assumiu o papel de professora. Era o início de uma trajetória colaborativa com a educação na comunidade.
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Enquanto isso, a Associação de Moradores ganhava credibilidade e trabalhava na resolução de conflitos dentro do Morro dos Macacos, em crescente expansão. Embora a construção de barracos fossem proibidos e muitas vezes derrubados pelo Estado, as casas voltavam a se reerguer. A pressa por um teto provoca o crescimento desordenado e nesse desalinho não era raro uma parede bloquear a janela de um vizinho. A organização iniciada por Anna entrava em ação no papel da Justiça, com diálogo aberto e nenhum processo burocrático.
O principal objetivo de Dona Anna, entretanto, permanecia viabilizar um conforto as crianças menores. A creche Patinho Feliz ganhou forma em meados dos anos 80. “A creche é a base de tudo. Eu dou muito importância. É onde se faz a base da personalidade e precisa de educadores capacitados para isso. Me sinto muito feliz”, afirma. O espaço recebe a terceira geração de pequenos moradores e representa um alento para as crianças, cujas vielas estão longe da representação ideal de quintal. O ambiente amplo dentro da creche permite que o faz-de-conta não tenha fim.
Creche Patinho Feliz é o maior orgulho de Anna Marcondes. Quase todos os moradores passam pelo cuidado do espaço. (Foto: Celia Santos)
A narrativa de Dona Anna é linear, obedece a cronologia dos fatos e facilita o trabalho do ouvinte no desenrolar de tantas histórias. A fala, contudo, é interrompida diversas vezes pelas pessoas que a encontram no caminho e fazem questão de um gesto de carinho para com a moradora tão especial.
“Dona’Anna?! Ajuda todos. Com certeza devo muito a ela. Estou empregado graças a essa mulher”, expõe Jorge Luiz Magalhães, fazendo pequena pausa na limpeza da Vila Olímpica Artur Távola, ao pé do Morro, por onde Anna seguia sua caminhada.
O destino dela era a Oficina Jovens Autores, parte da Caravana das Artes, onde iria conversar com o grupo de adolescentes sobre o processo de escrita. “O jovem tem um potencial muito grande e uma visão nova. Tem que ter coragem para escrever um texto, fazer uma poesia”, afirma a professora.
Dona Ana sempre sentiu a necessidade de retratar a história pela qual ela e o Morro dos Macacos passaram. O trabalho dela hoje é o principal registro do processo de crescimento do local. Recentemente, um de seus contos foi escolhido para integrar um livro de crônicas de não-autores.
“Já vi criança que não tinha brinquedo transformar uma lata de sardinha vazia em uma caçamba de trator, que na sua imaginação carregava barro para construir moradia. (…) Já vi, entre mulheres que carregavam água morro acima, algumas conseguirem um equilíbrio tão perfeito que sambavam com a lata d’água na cabeça, sem deixar cair uma gota no chão, a ponto de serem convidadas para shows dentro e fora do morro.” – trecho da crônica Saberes Comunitário, de Anna Marcondes.
“O pessoal não sabe daquelas lutas passadas. Queria contar a verdade”, afirmou Dona Anna, cuja preferência narrativa é sempre a vida em sua comunidade. Além de enorme importância na educação infantil, a professora também trabalhou projetos com jovens da comunidade. Saudosa, ela se lembra dos passeios que fazia com os meninos, de 12 a 14 anos, em que os levava para conhecer outros lugares do Rio de Janeiro. Mesmo inseridos na capital carioca, muitos não saem da realidade do próprio bairro. O projeto, que dava reforço escolar por meio do esporte, durou mais de 20 anos.
Morro dos Macacos começou com seis habitações e se expandiu rapidamente. (Foto: Celia Santos)
Dentre os tantos engajamentos, Dona’Anna também lamenta o fim do projeto que ajudava pessoas em situação de vulnerabilidade social em decorrência da dependência química. A iniciativa teve algumas perdas, mas prefere medir o impacto pelos casos de sucesso. “É muito pouco que eu posso fazer, mas o pouco pode transformar e chamar outras pessoas”, comentou.
No último dia primeiro de maio, Anna Marcondes completou 80 anos. Nasceu no Dia do Trabalho e não haveria data mais representativa. O esforço a fez conhecer outros países, ou acompanhando os projetos ou para retratar sua trajetória de luta. “Já fui para a Suíça, duas vezes, para a África do Sul, Inglaterra”, enumera orgulhosa.
O Sol se preparava para se pôr por trás do Morro dos Macacos e as histórias prosseguiam sem que o fim fosse almejado pelos atentos ouvintes. Dona Anna, no entanto, se levantou e decidiu seguir seu rumo no mesmo passo moroso. Recolheu a pastinha da mesa, a colocou por baixo do braço esquerdo e anunciou: “Agora, tenho aula de inglês. Bye”.
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