– Tem muita criança por aqui.
– Fale baixo, se não aparecem mais.
E riu.
A travessia até a Ilha do Massangano, comunidade pertencente ao município de Petrolina, é feita de barco passando pelo Rio São Francisco. As ruas são de terra e os poucos veículos motorizados são algumas motos, encostadas nas portas das casas. Prevalecem mesmo as bicicletas, charretes e vertiginosos pés que correm sem direção consciente. Todo esse movimento é comandado por crianças o que, em um primeiro momento, leva o novato visitante a pensar serem elas as donas do pedaço. Talvez não haja equívoco nesta primeira impressão, mas certo é que a fama da Ilha está na oposição aos pequenos. São os velhos os responsáveis pela reputação da comunidade.
A última casa da rua, que pouco se difere das demais, simples e pequenina, guarda 80 anos de história da comunidade e suas tradições personificadas na figura de Dona Amélia. Abre a porta e não se preocupa em fechá-la. Caminha lentamente e com dificuldade, aceita um braço como apoio e oferece a cadeira antes de se sentar.
Crianças dominam as ruas de terra da Ilha do Massangano, mas a tradição ali é de “véio”. (Foto: Célia Santos)
Amélia Oliveira da Silva é a mais velha do tradicional Samba do Véio, ritmo centenário nascido e preservado na Ilha do Massangano, cujo pai de Amélia foi um dos percursores. A morosidade das pernas não permite que ela se arrisque na dança eloquente, mas isso não constitui empecilho, pois Dona Amélia sempre preferiu cantar e tocar. Se a memória é falha para datas e a fazem tropeçar na própria idade, as letras das canções tradicionais são declamadas sem cambalear.
Segundo a tradição, o grupo de tocadores e sambistas passam pelas casas oferecendo diversão. A Cantiga dos Reis é o pedido de permissão para entrar e se a porta abrir, a farra ganha salão.
Dona Amélia não perde a satisfação em tocar o tamborete para os senhores do samba dançarem. (Foto: Célia Santos)
Em tom de prosa, Dona Amélia conta que o ritmo começou a fazer parte daquela comunidade com seu pai, que saia com os amigos para “brincar o samba”. Quando ele morreu, ela tinha apenas dois anos e ainda mal coordenava o movimento das pernas. No entanto, toda sua ancestralidade musical se manifesta em alegria ao som do tamborete, do pandeiro, do triângulo e do cavaquinho, os quatro elementos que fazem o Samba do Véio e o torna uma das inúmeras manifestações populares brasileiras.
ESPECIAL SAMBA DO VÉIO
“Antes a gente chamava só de Samba, aí depois veio esse negócio de Samba do Véio, porque só os mais velhos é que participavam. Foi Dona Raimunda que começou isso aí, a falar assim: Samba do Véio. Hoje participa todo mundo, mas ainda são os velhos que dançam mais”, conta, parando a narração em um riso frouxo, que interrompe a fala como soluço.
Alguns adultos eram resistentes à participação de crianças, pois faz parte da tradição, oferecer aguardente àqueles que entram nas casas levando o samba. Mesmo assim, Amélia começou a fazer parte do grupo com 12 anos e não abandonou mais o ritmo.
Tradição começou com o pai de Dona Amélia e continua muito bem representada no pequeno distrito de Petrolina. (Foto: Celia Santos)
Aos 79 anos, a voz é carregada de uma rouquidão marcante. Canta juntando as sílabas, como se elas também estivessem no movimento dançante do samba. Quando está na roda do Samba do Véio tudo que vê é um misturar de cores. Um glaucoma agravou a miopia das vistas e mesmo com a cirurgia nos olhos, não voltou a ter precisão dos contornos. Dá de ombros: “Tem nada não”.
O Samba do Véio é um alento para Dona Amélia. Ela trabalhou ao longo de muitos anos na roça, de onde tirava seu sustento para a vida simplória, porém não menos proveitosa e divertida. Não acumulou muitos bens, mas encontra aconchego dentro de sua casa, companhia nas conversas pela varanda, contentamento ao ver as crianças brincando na rua, vez ou outra invadindo seu quintal, e amor pela música.
A quantidade de crianças na Ilha do Massangano impressiona. Na última casa da rua, mora mais uma. É de se perceber pelo riso frouxo que ressoa.
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