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Foto do escritorInstituto Mpumalanga

Do samba, Dona Filó mantém tradição da feijoada em bairro abolicionista de Vila Isabel


Vem cortando as ruas sem se perder, vem pelo alto, passa por baixo, cruza, dobra-se sem nó, encaixa em fenda e sai ileso. Os fios estão postos em exata desordem no Morro dos Macacos.  Desalinho que reflete o empilhado de casas e precisão que as encaixa em cada espaço como quebra-cabeça.


A energia entra pela janela e não se perde no Morro dos Macacos (Foto: Celia Santos)

A energia entra pela janela e não se perde no Morro dos Macacos (Foto: Celia Santos)


Pela janela de madeira robusta, papéis de revistas rasgados sem nexo estão rodeados de fita crepe. O fio fura o improviso. Entra na casa com cheiro de avó, e encontra Dona Filó ao pé da cama, segurando um saquinho repleto de CDs, cuja maioria das capas estampa a figura do cantor Martinho da Vila.

No bairro de Vila Isabel, Martinho é figura tão ilustre quanto corriqueira. Afinal, a comunidade da zona norte carioca lhe rendeu nome e reconhecimento artísticos.  Dona Filomena também recebe congratulação do bairro, porém menos melódica e mais saborosa.

É a cozinheira oficial da Unidos de Vila Isabel, título que ostenta com orgulho e que lhe fora dado pelo próprio Martinho, após a primeira vitória da escola de samba no grupo especial do Carnaval do Rio de Janeiro, em 1988.

“Foi um desfile histórico. Quando as pessoas viram, toda aquela gente negra, descendo o morro, como maltrapilhos, ninguém acreditava”, relembra Filó. O enredo Kizomba, a festa da raça, trouxe para a Sapucaí a temática africana, que tanto tem influência no bairro abolicionista, justamente no ano de centenário da Lei Áurea, promulgada pela Princesa Isabel. A escola ousou ao abdicar das fantasias exorbitantes e optar pela palha e o sisal, que dava aspecto simplório, ao mesmo tempo surpreendente.

Naquele ano, Dona Filó fez uma feijoada em plena avenida e o cheiro do feijão aqueceu ainda mais a apresentação da Vila Isabel. As cumbucas de feijoada foram sendo entregues ao público e a vitória literalmente ganhou sabor especial para Filomena. “Tempero especial”, corrige, enquanto utiliza uma colher de pau de quase meio metro para mexer a panela 28 anos depois.


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Ela se perde nas memórias. Emenda frases sem tomar fôlego e sem oportunizar interrupções. Exagera nas histórias, mas não excede no sal. “Não se pode bater no peito e dizer que é cozinheira se não souber a quantidade de feijão. Têm 100 pessoas, eu faço para 100. Tem mil, vai sair comida para mil”, garante.

Dona Filó tem braço forte de mexer panela. Já perdeu as contas de quantas feijoadas serviu, no entanto, continua a preparar a especialidade sem perder o vigor e o sorriso no rosto. Ri como poucos, abusa das gírias e do sotaque carioca e quando termina a frase com “deixa comigo” é a brecha para sair de perto. Sangue ferve feito feijão.


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É de mulheres como Dona Filó que é composto o Morro dos Macacos. Muitas vezes severas no trato, porém há de ser rijo para encarar vida tão íngreme. A cozinheira já trabalhou de servente de pedreiro, na limpeza das ruas e de doméstica. “Só não fiz uma coisa: afanar nada de ninguém”, pontua.

Filomena foi casada por 45 anos, desde os 19 anos. Morou no alto da comunidade, mas hoje conquistou uma casa na entrada no Morro. A residência conserva características do século passado, como as pesadas portas de madeira espessa, os janelões emoldurados e os azulejos que resistem ao tempo. As rachaduras não requerem disfarce. “Foi de um antigo cirurgião dentista”, explica. Outrora de alto padrão, a casa perdeu valor econômico devido à localização, com expansão da comunidade dos Macacos por trás dos muros. Vila Isabel dialoga intensamente com o passado e a moradia de traços provincianos é marca tão peculiar quanto sua inquilina.

“Não pode parar. Se parar enferruja”, afirma a inquieta Filó. Ela preparava uma feijoada para cerca de vinte pessoas. O almoço dominical seria servido para a Velha Guarda do samba da Unidos de Vila Isabel e para os meninos da bateria mirim, que já faziam alvoroço no quintal, onde uma mesinha foi cuidadosamente arranjada e cercada de cadeiras.


Dona Filó já virou até letra de música composta por Martinho da Vila.

Dona Filó já virou até letra de música composta por Martinho da Vila.


“Eu gosto disso, de cozinhar para os outros. Ter pessoas em casa é uma maneira de sentir que eu existo”, explica Filó, que só se senta para almoçar quando o Sol se prepara para se pôr. A moradora de Vila Isabel precisa da conexão com a comunidade. Gosta de ficar na varanda, cumprimentando quem passa, perguntando pela família.

No armário, as prateleiras repletas de pratos provam que a feijoada para duas dezenas é pouco para quem já serviu na casa dos milhares. Na reunião de tantos sambistas, o batuque é inevitável, mas Dona Filó o escuta da cozinha. Remexe-se nas batidas, porém não abandona o serviço enquanto não chega ao fim. Recusa ajuda e é bom não insistir sobe o risco de a colher de pau servir de açoite, pois no princípio ela disse: deixe comigo.

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