Preste atenção! O Papa-Figo vai comer o seu figo, se não ficar quieto: se desobedecer ao pai; se desobedecer à mãe. Vai comer o seu figo! – e as crianças de muitas regiões rurais do Brasil, sobretudo de Pernambuco, Ceará e Paraíba, logo compreendem que este homem velho, alto, de roupas sujas e desalinhadas, não está interessado em se deliciar com o fruto (ou a flor) com que nos presenteiam as figueiras. Não, elas compreendem o alerta: Papa-Figo pode aparecer repentinamente em suas vidas, retirá-las de suas famílias e enfiá-las num saco com o único propósito de devorar seus fígados.
Trata-se de uma lenda bastante apavorante. Mas qual a sua origem? E qual a razão para ter surgido?
O estímulo ao medo para impor regras e estabelecer limites, incluindo territoriais, não é um grande diferencial desta lenda, sendo recurso recorrente de todos os tempos e regiões do mundo: lembram-se dos perigos que a floresta reservava para Chapeuzinho Vermelho? – neste caso, os camponeses europeus lançavam mão do temido Lobo Mau.
As lendas e histórias surgem no campo e entram no imaginário infantil.
As tradicionais cantigas de ninar, também oriundas do campo, têm o mesmo tom provocador de terror: “Nana neném que a cuca vem pegar; papai foi pra roça; mamãe foi trabalhar” ou, ainda, “Boi, boi, boi Boi da cara preta, pega esta criança que tem medo de careta.”
A segurança de sua prole sempre foi uma preocupação constante dos trabalhadores do campo, pois as longas e intensas horas de trabalho os distanciam de uma convivência mais próxima com os filhos. Talvez esteja aí uma possível causa para esta forma de cuidar: fazendo uso de histórias contadas e cantadas a sugerir perigos simbólicos, externos e rotineiros.
Óbvio que muitos já se debruçaram sobre as prováveis causas e consequências desta forma de educar, mas não é este o objetivo deste breve texto. Aqui, o que mais interessa é o registro cultural de uma maneira de criar e narrar lendas que, embora tenha características universais, encontra no Brasil traços muito peculiares.
As histórias, ainda que assustadoras, ajudam no fortalecimento de tradições e educação de crianças.
Quanto ao Papa-Figo, há nele um dado de verossimilhança que o torna ainda mais medonho que todos os lobos e gigantes de cinco olhos: ele é um homem doente e precisa comer fígados de crianças para se curar. O que pode ser mais assustador que isto?
As características verossímeis de Papa-Figo se, por um lado, causam impressões bastante ruins, por outro, revelam um talento muito próprio de nossos narradores rurais: um jeito envolvente e, a meu ver, delicioso de descrever uma lenda ou narrar um “causo”, dando a entender que ele (narrador), ou alguém próximo a ele, é testemunha viva do que se está narrando. Afinal, Papa-Figo é uma lenda bem possível de ser real.
Outra constatação fascinante é o fato de o fígado ser um dos órgãos mais complexos e importantes para o nosso metabolismo, considerado por algumas correntes espiritualistas como o órgão capaz de gerar a coragem que transforma ações pensadas em ações consumadas. Ou seja, é possível que haja um conhecimento empírico do camponês sobre a importância desse órgão. Conscientemente ou não, o camponês cria e recria uma lenda em que, num sentido metafórico, pode servir de alerta sobre o perigo de perdermos, ao longo da vida, a vitalidade e a coragem que possuímos enquanto crianças (cuidado com o mal que nos rouba a força de viver!). Talvez não seja uma mera coincidência sua semelhança com o mito grego de Prometeu: aquele que foi acorrentado a uma rocha pelos deuses e tem seu fígado devorado por uma ave de rapina durante o dia, por toda a eternidade. Todas as noites, seu órgão se regenera totalmente numa perene reconstrução da vitalidade humana.
As crianças crescem com as fantasias das histórias, porém elas não a afastam da realidade.
Nada mais significativo para representar a força vital de nossos trabalhadores rurais que, apesar das inúmeras condições adversas, não desistem nunca da luta por uma vida digna, tal como traduz o saudoso Patativa do Assaré:
Eu sou de uma terra que o povo padece Mas não esmorece e procura vencer. Da terra querida, que a linda cabocla De riso na boca zomba no sofrer Não nego meu sangue, não nego meu nome Olho para a fome, pergunto o que há? Eu sou brasileiro, filho do Nordeste, Sou cabra da Peste, sou do Ceará.
Voltando ao nosso Papa-Figo, é muito precioso este registro de Abraão Batista, abrindo-nos várias possibilidades de reflexão:
Papa-figo assombrava Somente com o seu nome Se os grandes tinham medo, E das crianças, nem se tome Pois o pavor era maior Do que se morrer de fome.
O papa-figo era um homem Por um rico encomendado Para caçar fígados jovens Para curar um leprado Porque o doente era rico Vivia sempre guardado.[1]
Não se sabe exatamente a origem da lenda, há registro em Câmara Cascudo[2] e em Gilberto Freyre[3], mas, sabe-se, que foi adquirindo várias faces como toda boa lenda, e hoje inspira letras de forró e de frevo por todo o nordeste. Letras que, embora divertidas e alegres, jamais menosprezam os perigos do temível Papa-Figo.
Alexandra Pericão
Professora do Instituto Mpumalanga, Alexandra atua na oficina Jovens Autores, dentro do projeto Caravana das Artes. É escritora, colecionadora e contadora de histórias daqui e dacolá!
[1] Folclore n 63. Centro de Estudos Folclóricos, Recife (BATISTA, 1978, apud CASCUDO, C. Dicionário do Folclore Brasileiro, 9ª. ed. Global Editora, 2000, P. 477) [2] CASCUDO , C. Dicionário do Folclore Brasileiro, 9ª. ed. Global Editora, 2000, P. 477 [3] FREYRE. G. Assombrações do Recife Velho, 4ª. ed., Ed. Record, 1987, p. 81 e 82.
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